Atualidades e psicologia

Psicossomática: um olhar para a orquestra psique-corpo e seus desafinos

Psicossomática: um olhar para a orquestra psique-corpo e seus desafinos

Psicossomática, já se deparou com essa palavrinha por aí?

Trata-se de um termo bastante utilizado, porém pouco compreendido.

Se você é profissional da saúde, provavelmente já entrou em contato com essa expressão, ou até a mencionou em alguma ocasião, mas talvez ainda não tenha se questionado sobre seu significado real.

Não é raro que “psicossomática” seja empregada como sinônimo de “somatização”, “histeria”, ou outros termos relacionados (Ramos, 2006).

Com frequência, no meio médico, essa noção é aplicada aos quadros de adoecimento sem etiologia comprovada segundo o modelo médico-científico (Okumura, Serbena e Doró, 2020), ocasiões em que os profissionais costumam recomendar ao paciente que busque terapia, pois a questão deles é “psicológica”.

Para entender essa proposta, fique aqui nesse artigo que será explicado o que é, como surgiu e a relação dessa abordagem com a Psicologia Analítica.

Inicialmente, é necessário voltar na história e entender, ao longo do tempo, como foi a percepção do ser humano e do mundo e de que modo isso se repercutiu no entendimento sobre saúde e doença.

Nesse sentido, têm-se alguns modelos que guiaram a forma de lidar com esses processos.

O primeiro a ser considerado é o modelo primitivo, que se baseava na unidade harmônica entre homem e natureza.

Nesse período, o ser humano vivia sob um estado de indiferenciação entre sujeito e objeto, entre ego e Self, entendido por Jung como Participation mystique, conceito do antropólogo Levy-Bruhl.

Assim, se a vida se guiava pela ordem natural do espírito, os procedimentos terapêuticos seguiam essa mesma lógica, sendo reunidas, portanto, em um único indivíduo as funções de sacerdote, médico e curador, os conhecidos xamãs (Ramos, 2006).

No modelo grego, por sua vez, houve a primeira separação do que é de ordem material e espiritual. Foi criada, também, a perspectiva científica tal como conhecemos hoje, seguindo as etapas de observação, análise, dedução e síntese.

Apesar disso, permaneceu a ideia da unidade da diversidade mutável, um cosmos criador e ordenador do mundo como uma realidade indispensável, de modo que a divisão no estudo ocorreu apenas para fins de compreensão do fenômeno natural.

Os gregos seguiram valorizando o olhar para o homem como um todo, cuidando de todos os aspectos que o integram, inclusive atribuindo alto valor de cura às palavras e outras vias de expressão (Ramos, 2006).

Na sequência, foi desenvolvido por Descartes o modelo cartesiano, segundo o qual matéria e mente são totalmente dissociadas, embora estejam ligadas a um plano divino. Descartes chega a comparar o corpo a uma máquina, que funcionaria independente dos processos mentais (Ramos, 2006).

Em meados do século XIX, com a descoberta da psique, ganhou força na prática médica o modelo romântico. Deixando de lado o racionalismo da época, essa perspectiva entendeu a saúde a partir de uma pluralidade de fatores, com foco na observação clínica e no vínculo terapêutico.

Nesse modelo, raramente eram prescritos tratamentos gerais, haja vista a ênfase nas especificidades de cada paciente (Ramos, 2006).

Em outra proposta, contrária ao modelo romântico, surgiu o modelo biomédico. A doença passou a ser vista como um desvio do normal, considerando principalmente os distúrbios biológicos, sintomas e a semiologia das doenças.

Essa vertente desconsiderou por completo os outros aspectos do processo de adoecimento, assumindo fortemente um caráter materialista, determinista e universalista (Ramos, 2006).

Note, caro leitor, o gradativo abandono do olhar integrado para o ser humano, mesmo com o modelo romântico, que retomou essa visão por um breve período.

Ao longo dos anos, a dicotomia mente-corpo foi se estabelecendo como premissa nos tratamentos de doenças e segue presente nos dias de hoje.

Ante o exposto, a primeira observação sobre a proposta psicossomática é que busca romper com essa visão dualista e recuperar a percepção do indivíduo em sua totalidade.

Dessa forma, essa nova linha parte de um modelo holístico, que resgata a ideia inicial da interdependência entre matéria e psique e se norteia por três principais princípios: o indivíduo existe em muitos níveis e domínios; cada ser humano é único e deve ser visto como tal; a autonomia deve ser encorajada no processo de cura do doente (Ramos, 2006).

Assim, a psicossomática pode ser entendida como uma abordagem que busca compreender a pessoa de forma integrada, considerando seus domínios físico, psicológico, social, emocional e espiritual.

Dentro dessa perspectiva, todos as doenças são psicossomáticas, até mesmo as que possuem explicação etiológica pela ciência médica, haja vista a impossibilidade de separação do que é material do psíquico (Okumura e colaboradores, 2020).

A psicossomática encontra fundamentos na Psicanálise e em diversas áreas da Psicologia (Ramos, 2006), mas muitos autores, inclusive a deste artigo, destacam a contribuição especial da Psicologia Analítica no respaldo teórico dessa vertente.

Isso porque Jung já entendia mente e corpo como processos interdependentes, com influências mútuas entre aspectos conscientes e inconscientes.

Para Jung (2015): “A separação entre corpo e alma é uma operação artificial, uma discriminação que se baseia menos na natureza das coisas do que na peculiaridade da razão que conhece. A intercomunicação das características corporais e psíquicas é tão íntima que podemos tirar conclusões não só a partir da constituição do corpo sobre a constituição da psique, mas também da particularidade psíquica sobre as correspondentes formas corporais dos fenômenos.”

O autor percebeu essa interdependência por meio de seus experimentos com o teste de associação de palavras, cujos resultados apontaram para a correspondência fisiológica de todas as emoções e fenômenos psíquicos (Ramos, 2006).

Para entender como um aspecto psíquico se expressa no corpo ou na mente por meio de um sintoma, a Psicossomática lança mão de alguns conceitos-chave da Psicologia Analítica, tais como: complexos, arquétipos, símbolos, ego e Self.

Embora não seja o objetivo desse artigo esmiuçar como ocorre tal processo, cabe dizer que os sintomas surgem a partir de aspectos inconscientes que não foram devidamente simbolizados, sendo que, no tratamento de determinada doença, busca-se compreender não só sua causa, mas também o seu significado, sua finalidade (Ramos, 2006).

Importante salientar que essa perspectiva simbólica, no contexto clínico e na pesquisa, não visa questionar e/ou negar a importância de investigar a causa orgânica das doenças, e sim ampliar o entendimento do processo de adoecimento como um todo, da experiência do indivíduo em relação à doença e suas procedências psíquicas.

O todo indissociável “psique-soma” é como uma grande orquestra regida pelos processos inconscientes. Nem sempre o ego entende os movimentos do maestro e surgem alguns desafinos.

É na observação da (des)harmonia das melodias que surge a psicossomática, cabendo ao profissional dessa abordagem compreender para que algumas cordas, madeiras, metais e percussão começam a se destaca

 

Referências

-Ramos, D. G. (2006). A psique do corpo: a dimensão simbólica da doença (3 ed.). São Paulo: Summus.

-Okumura, I. M., Serbena, C. A., Doró, M. P (2020). Adoecimento psicossomático na  abordagem analítica: uma revisão integrativa de literatura. Psicologia: teoria e prática            (V. 22, n°2).Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1516-     36872020000200013&script=sci_arttext&tlng=pt

-Jung, C. G. (2015). Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes.

 

Psicóloga: Thaís Emos de Araújo

CRP:05/72641

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