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“Eu não sei quem você é”: sobre expectativa e realidade nas relações íntimas

“Eu não sei quem você é”:  sobre expectativa e realidade nas relações íntimas

“Eu não sei quem você é” é um livro que pode ser classificado como um drama doméstico, um gênero que foca principalmente nos conflitos em relações íntimas de personagens. Estes são sempre sobre preocupações de pessoas comuns, como conflitos na família e no trabalho, pobreza, doenças, etc. 

No livro em questão, a trama principal é sobre a relação de Holly e Jules, duas mulheres que se conheceram como universitárias e continuaram a ter uma relação íntima, na qual apoiaram uma à outra nas dificuldades da vida. No entanto, a relação delas é colocada sob prova de fogo quando Safie, filha de Jules, acusa Saul, filho de Holly, de abuso sexual. O livro desenvolve focando de forma minuciosa os diálogos, os pensamentos e as emoções de cada uma delas, explorando assim suas crenças, expectativas, incerteza e arrependimentos.

Holly é uma professora universitária de escrita criativa que vem apresentando seminários de consentimento sexual para universitários. A acusação a força a conciliar sua posição ideológica com seu papel de mãe para si mesma, além de abrir margem para que outros usem isso para atacá-la, desvalidando suas falas. Essa parte não foca em fazer uma avaliação do nível de coerência ou hipocrisia da personagem, mas sim explorar como Holly sofre enquanto tenta conciliar o que ela conhece enquanto estatísticas e teoria sobre violência sexual com o que ela sente e acredita em relação a seu filho. Talvez a parte que traz mais reflexões é ver que Holly tem suas ideologias ainda mais cobradas por aqueles que menos viam valor no que ela falava.

Jules é uma empresária, dona de uma empresa de roupas de bebês. Ela enfrenta a difícil posição de tomar alguma medida quanto ao ocorrido, enquanto  tenta amparar e proteger a infância de sua filha. Há vários contrastes da realidade dela com a de Holly, a mais aparente é sua condição financeira superior, mas uma das mais interessantes é o menor contato que a personagem tem com o feminismo, que ao longo do livro aparece como a falta de um guia de como agir e conversar com sua filha.

Esse conflito, e essa relação, não é a única explorada no livro. Holly é também uma viúva, que está agora em uma relação séria com Pete, um psicólogo. Holly contrasta as ações de Pete com como seu marido falecido reagiria, permitindo ao leitor experienciar a realidade de uma viúva que tenta amar um novo homem e ao mesmo tempo sente a falta constante de seu antigo marido. Acompanhando Pete, o leitor vê as responsabilidades de um homem que tenta entrar em uma família, o que exige a ele colocar seu afilhado como uma das prioridades de sua vida enquanto é comparado com um homem já falecido.

Já Jules é casada com Rowan, um homem com problemas temperamentais que teve de fazer um curso de controle emocional após um episódio em que ele agrediu outro homem. Essa relação mostra a confusa experiência de uma mulher que ama um homem que, no entanto, acrescenta mais peso emocional à mulher ao mesmo tempo que ajuda na divisão das responsabilidades. Sendo assim, o personagem de Rowan mostra como comportamentos machistas prejudicam não só a saúde emocional das mulheres ao seu redor como também a dele mesmo. 

Apesar desse livro não ter nenhuma associação com a psicologia, acredito que ele poderia facilmente ser usado até mesmo como material de discussão para a aprendizagem de várias questões psicológicas. Podemos evidenciar três delas:

 1) O papel de mãe

O livro explora o papel de mãe, que, como se sabe, nunca aparece de forma isolada, sendo a mulher também esposa e trabalhadora. Isso vem com um custo forte ao corpo e à mente das mulheres modernas, que são cobradas a apresentar bom desempenho, coerência e bem-estar em cada um desses papeis. Este custo é ainda mais intenso quando a mãe encontra fortes problemas em casa, pois é cobrado dela que isso não afete suas ações em seus outros papeis.

2)Rede de apoio

Para a psicologia, a rede de apoio pode ser entendida como pessoas  que estão disponíveis para nos ajudar quando necessário. Por exemplo, pode acontecer de passarmos por um momento de crise emocional que dificulta a nós fazermos algumas tarefas específicas, nesse momento precisamos de ter pessoas que estão dispostas a ajudar nessas tarefas enquanto nos recuperamos. Esse conceito aparece em mais importância ainda quando falamos de mães, pois como o/os filho(s) tem muitas demandas (e a mãe tem outros papeis) é mais frequente que elas precisem de ajuda de sua rede de apoio. A falta de uma rede leva a um maior desgaste emocional e mental do sujeito. Na história em questão podemos encontrar situações tanto de presença quanto de ausência de rede de apoio, assim como suas consequências para as personagens principais.

3) Expectativa do outro

O próprio título se refere a uma frase que vez por outra os personagens falam um para o outro: “eu não sei quem você é”, explorando o contraste entre o que esperamos dos outros e o que eles fazem. Essa questão é uma fonte comum de frustração para todos, pois muitas vezes esperamos algo de alguém e recebemos justamente o oposto. Por que isso acontece? Será que foi porque não conhecíamos aquela pessoa de verdade? Ou seria porque tínhamos expectativas irrealistas? E o que fazer depois dessa quebra do que esperávamos? Como lidar com essa nova imagem da pessoa que se forma para nós? Essas são as questões centrais que esse livro lida.

O livro foi escrito por Penny Hancock, uma jornalista que já escreveu sobre família e relacionamentos no The Guardian e no The Times. No dia de publicação desta resenha, exemplares do livro podem ser comprados em vários sites on-line por uma média de 60 reais.

 

Psicólogo:

Me. Wivinny Ferreira Lima CRP 09/013259

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