Infantil e educação

Rótulos, diagnósticos e o sofrimento psíquico da criança-problema

Rótulos, diagnósticos e o sofrimento psíquico da criança-problema

Atualmente tem crescido de modo significativo a procura por profissionais que avaliem o estado mental e comportamental de crianças e adolescentes. Para quem procura esses serviços, há um mercado com múltiplas opções, porém nem sempre satisfatórias. A avaliação de um especialista ainda é a melhor alternativa, no entanto, há a intervenção dos generalistas que por vaidade asseveram irresponsavelmente seus palpites, quer pelos corredores das instituições, quer pelas redes sociais, o que prejudica famílias e pode atrasar o acesso ao cuidado adequado. Por vezes nos perguntamos: de onde surge o interesse em avaliar e parametrizar os comportamentos das crianças? Quem quer saber e o que quer saber sobre o jeito de ser dos pequenos? Existe um padrão?

A abordagem a essa temática passa pela reflexão da importância de se estimular o diálogo entre famílias, educadores e profissionais de saúde, com foco no cuidado especial à criança. Entende-se que nem sempre a demanda pelo cuidado é propriamente da criança, e pode ser fruto de um sintoma implícito do adulto e da cultura das instituições e organizações que são formadas por pessoas com seus anseios e angústias. Ao lidar com crianças faz-se necessário lidar também com a criança que fomos e com as concepções que temos internalizadas do que é ser criança.

A criação do conceito de infância passa pela tríade família-Estado-escola, e possui influência histórica, o que significa que ser criança no interior do Brasil é diferente de ser criança em uma pequena vila do Nepal. Para o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), criança é todo o indivíduo de 0 a 12 anos de idade. Difere-se do adulto em muitos aspectos, dentre eles o fato de encontrar-se em condição especial de desenvolvimento. No percurso desenvolvimental, podem ocorrer situações geradoras de conflitos. No entanto, para compreender o sofrimento infantil, faz-se necessário lançar olhar sobre seu contexto. É no meio ambiente que a criança se desenvolve e nesse próprio meio que ela adoece. Se ela se desenvolve de modo multifatorial, assim também – de igual modo depara-se com o adoecimento.

O profissional competente sabe que ao receber o sujeito é necessário acolhê-lo em seu contexto biopsicossocial, e não importa se ele é atendido na creche ou na clínica, sempre irá requerer acolhimento integral para si e sua família. Um dos primeiros ambientes onde a criança é inserida é a escola, local conhecido desde antiguidade clássica, como normatizador e balizador das aprendizagens primárias do sujeito.

Iniciamos a aprendizagem informal desde a vida intrauterina, mas é na escola que se formalizam os saberes tanto no campo concreto quanto simbólico. A escola como segundo normatizador, (os primeiros são os cuidadores), será uma das primeiras instituições a dizer se a criança está se portando como deve, exercendo assim, um papel regulador de condutas. Podemos inferir que a escola é detentora de parâmetros normatizadores para a resposta socialmente aceitável do que é ser criança. Embasa-se essa afirmação no fato de termos que lidar cotidianamente com os encaminhamentos de crianças vistas como problema em seu contexto social e escolar. Daí a necessidade de lançarmos olhar cuidadoso sobre a educação oferecida e o importante papel desta instituição e seus atores no desenvolvimento infantil e na condução do cuidado ofertado em momentos críticos.

Os pais como primeiros normatizadores, sinalizam para os educadores quais são os aspectos ‘negativos’ que a criança apresenta. O segundo normatizador, que é a escola, encaminha para os profissionais da saúde mental num movimento de vice-versa, onde nem sempre a criança – sujeito focal, é escutada. Por meio de avaliações pode-se dizer por exemplo, o que esperar de um menino de seis anos que não sabe como lidar com a angústia de ser supostamente preterido após a chegada do irmãozinho mais novo. Espera-se dos avaliadores respostas sobre como a criança de dois anos deve lidar com a ausência da mãe que a deixou pela manhã para ir trabalhar e até ao cair da noite não chegou.

Quando não se encontram respostas para comportamentos diversos e destoantes, iniciam-se assim, as comparações com crianças na mesma faixa etária, o que pode acarretar sofrimento intenso à família. As angústias contidas no simbolismo expresso pela ausência da mãe, nem sempre são escutadas e às vezes sequer observadas. O que as pessoas tendem a perceber em primeira mão é o comportamento inadequado, o medo aparentemente imotivado de uma criança que se recusa a se socializar, a obedecer, a se alimentar, afinal esses são atos explícitos e sintomas do problema que está encoberto. Os problemas são em muitos casos, de cunho emocional. Surgem diversas questões ao se tentar compreender o modo de funcionamento dos pequenos. Por que essa criança de seis anos não se adapta e todas as outras lidam bem com a mudança? A criança que reage diferente das outras, o faz por ser única, portanto se porta de modo singular. Geralmente espera-se que ela reaja como as outras para não fugir ao padrão. Ela reage também, conforme seu contexto biopsicossocial.

Na atual sociedade, para manter uma criança, sua mãe ou cuidador em muitos casos, precisa trabalhar arduamente e deixá-la sob os cuidados de terceiros, o que em diversos sentidos será importante em seu desenvolvimento e por vez angustiante para a díade mãe-criança, pois ambos enfrentam a dor da separação então necessária. A vida cotidiana requer do adulto cuidador e educadores a praticidade de ações. A mãe precisa vestir rapidamente seu filho e levá-lo à creche em tempo hábil, pois necessita trabalhar, a professora tem uma ementa a cumprir, e até a babá que está por conta do pequeno, precisa gerir as tarefas a tempo. Não é bem aceita na escola uma criança que tumultua a aula, que requer repreensões, que tem comportamento desafiador ou que agride os colegas. Em casa, de igual modo também não se aceitam reações contrárias às normas. Nem sempre os pais estão a par do que acontece integralmente com seus filhos, dada a separação diária. Portanto nesse caso observações minuciosas ficam ao encargo consequente das instituições, bem como o papel que é primário aos responsáveis e é lá que os pais buscam respostas sobre os comportamentos infantis.

Crianças pequenas manifestam sintomas que enunciam sofrimento psíquico, depressão ou reação ao estresse, em forma de agressividade, irritabilidade, inquietude ou inibição, desobediência, negação em realizar pequenas tarefas, postura desafiadora, etc. Quase sempre quem primeiro observa essas mudanças são os educadores e cuidadores imediatos. Em momentos de sofrimento psíquico infantil, as palavras dão lugar aos comportamentos que se alteram qualitativa e quantitativamente e geralmente são inaceitáveis nos ambientes socializadores e normatizadores. A criança se cala e reage. O olhar cuidadoso sob os sinais do sofrimento infantil nos mostra que crianças não tem problemas, no entanto cada vez mais se percebe quão disfuncionais e problemáticos são os ambientes onde elas vivem, influenciando na formação de sintomas. Nesses casos, a criança nem sempre tem repertório verbal efetivo para dizer de suas angústias. Enquanto cuidadores podemos acessar seu meio para fazermos juntos o percurso que ela não conseguiu fazer sozinha. A interrupção ou prejuízo no desenvolvimento ocorre no exato lugar onde a criança parou por não ter recursos para transpor o obstáculo, seja ele concreto ou simbólico. Ela apenas comporta-se. A criança sente, reage. Nem sempre o comportamento e emoção expressa é coerente com o modo adulto de dizer da dor e do sofrimento. Quando esperamos que ela se comporte de modo aceitável, talvez estejamos tratando-a como se esta fosse um adulto em miniatura. Fazendo isso, regredimos em mais de um século na compreensão do que é ser criança e nas concepções adequadas de desenvolvimento humano.

Há escolas onde coordenadores pedagógicos e educadores procuram os pais informando que não podem aceitar a criança desafiadora. Entende-se com essa afirmação que a escola em questão, não se encontra apta a lidar com sua própria clientela, ora por despreparo, ora por desinteresse, e os pais de igual modo por vezes se apresentam desorientados e exaustos do cuidado com a criança por não serem mais os detentores das informações necessárias que os fariam compreender o próprio filho. Resta então entregá-los aos especialistas cujas aptidões psicométricas dirão o que se pode fazer ou onde agrupar o sujeito ‘desadaptado’?

A criança em sofrimento, se rotulada como problema, passa a ser vista como indivíduo que tumultua o ótimo ciclo de todos os outros. Se ela faz parte de uma prole de três filhos, é apontada como a problemática, aquela que interrompeu a paz do lar. Se compõe uma turma da pré-escola composta por vinte alunos, está ali para desestabilizar o aprendizado de dezenove seres cândidos que não podem ser incomodados. Às vezes a criança em sofrimento psíquico não é vista como parte de um todo que pode estar adoecido, afinal seu sofrimento se apresenta em forma de descumprimento de regras, e se confunde com indisciplina. Quando há rotulação, ela é apontada como a própria doença, e a postura higienista requer extirpar, diferenciar, distinguir. Rotula-se, para que todos saibam por meio da indicação ou de outros códigos quem é o transgressor. Nesses casos aquele sujeito está marcado, ele é o tabu e que fique o exemplo de como não se portar nesses ambientes.

O constante furor terapêutico ou vontade de curar, por parte de educadores, generalistas e familiares mal orientados, tem causado intenso sofrimento para crianças e para quem está próximo a elas. A conduta profissional deve ser antes de tudo com vistas a acolher, cuidar e em última instância diagnosticar. Não se faz um diagnóstico no “olhômetro” pelos corredores das escolas, nem tampouco em uma semana, mesmo em clínica especializada. Existem parâmetros estabelecidos pelos conselhos de Psicologia e Medicina que normatizam a emissão de diagnósticos psicológicos e psiquiátricos na abordagem infanto-juvenil. Em saúde mental, desconfie de diagnósticos rápidos. Para se chegar a uma conclusão diagnóstica leva-se tempo e em bom manejo, esse processo pode levar a conclusão de falseamento da hipótese inicial, especialmente em quadros reativos ao estresse. Muitas vezes as mães ou cuidadores dessas crianças são chamados à escola ou à clínica como quem vai responder a um inquérito, pois estão fragilizados, com medo do que podem escutar. Encontram-se cansados de rótulos ou de queixas que chegam diariamente em casa. Quando a criança passa por um processo de cuidado por parte de profissionais habilitados, sua família também recebe orientações que auxiliam na compreensão do que de fato está ocorrendo.

Alguns acontecimentos podem trazer alterações de comportamento tais como: as mudanças que se dão no ciclo do desenvolvimento, o crescimento, a chegada de um novo membro na família, a troca de escola, a perda de um bichinho de estimação, a perda de um ente querido, a separação conjugal dos pais e outros fatos de vida. Vale ressaltar que esses acontecimentos fazem parte de marcos situacionais no decorrer normal do desenvolvimento. Nem sempre esses fatos vem acompanhados de comorbidades ou problemas psicopatológicos. Portanto, se houver psicopatologias, somente uma avaliação profissional acurada irá mostrar quais diretrizes diagnósticas e prognósticas vem adiante. Não se medica comportamento, não se cura fatos de vida. A vida, vive-se.

A criança é grandiosa e nem sempre sabemos nos portar frente à sua vitalidade, à sua capacidade de ser. O sentido e expressão de seus afetos excedem alguns de nossos limites, porque perdemos muito da espontaneidade ao longo da vida. Se não sabemos nos portar frente aos mensageiros da vitalidade do sentir, precisamos repensar se desejamos de fato lidar com crianças. A criança desnuda nossas máscaras sociais, elas extrapolam os muros que erguemos em torno da escola, da família, da igreja, das relações.

Uma escola que inibe a criatividade e silencia os gritos eufóricos que se escutam no recreio, perdeu sua função lúdica – elemento fundamental no processo ensino-aprendizagem. Criança saudável se alimenta brincando, estuda brincando, veste-se brincando. Um lugar que não aceita crianças brincando e movimentando-se, não foi feito para ser habitado por elas. Talvez aquele diagnóstico que a criança levou para casa, seja apenas vontade de brincar de pique-pega mais um pouquinho ou só medo de crescer e ficar igual aos adultos que sentem e não falam, que pensam, mas não fazem, que amam mas fingem não se importar.

[1] Criança-problema é um termo usado nesse texto para especificar o sujeito rotulado pejorativamente como aquele que não se adequa às normas vigentes, ou que pelo que se supõe apresenta comportamentos desafiadores ou pouco adaptativos em relação aos padrões esperados.

Ednéia Glória | Psicóloga – 09/8591

 

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