Não existe Síndrome do Pensamento Acelerado
Esta semana eu fiquei saturado (no sentido irônico do termo) da quantidade absurda de desinformação científica a respeito de uma pretensa “Síndrome do Pensamento Acelerado”… Pois bem, para quem não sabe, este termo está entrando na moda nos últimos meses com base na difusão do livro “Ansiedade – Como enfrentar o mal do século – A Síndrome do Pensamento Acelerado”, do Sr. Augusto Cury. Antes de me ater à isso, vou transcrever a descrição do livro, que pode ser encontrado por R$ 9,90 pela livraria digital “Saraiva” (isso não é merchandising!):
Você sofre por antecipação? Acorda cansado? Não tolera trabalhar com pessoas lentas? Tem dores de cabeça ou muscular? Esquece-se das coisas com facilidade? Se você respondeu “sim” a alguma dessas questões, é bem provável que sofra da Síndrome do Pensamento Acelerado (SPA). Considerada pelo psiquiatra Augusto Cury como o novo mal do século, suplantando a depressão, ela acomete grande parte da população mundial. Neste livro, você entenderá como funciona a mente humana para ser capaz de desacelerar seu pensamento, gerir sua emoção de maneira eficaz e resgatar sua qualidade de vida.[i]
Vou começar com o mais básico: o Sr. Augusto Cury (que se autointitula Doutor [busquei seu nome no currículo Lattes e não encontrei, aliás, faz-se menção que ele recebeu um título de um “doutorado livre em psicanálise” pela Uniderc[ii], uma instituição não reconhecida pelo MEC[iii]) diz em uma entrevista ao jornal Bom dia Paraíba[iv] em 2014 que descobriu a tal da Síndrome do Pensamento Acelerado, que é um transtorno ocasionado pelo excesso de informação no cérebro (segundo o sr. Cury não se deve confundir este com a ansiedade), mas não apresentou nenhum dado científico baseado em nenhuma pesquisa para isso.
Como meu trabalho de pesquisador exige, fui buscar nas bases de dados nacionais a respeito de tema e para minha surpresa (na verdade não tão surpresa, já esperava de antemão o resultado) e as três mais utilizadas retornaram uma quantidade interessante de resultados: ZERO! Nenhum, nada, nadica de pitibiribas de qualquer artigo, tese, dissertação ou relatório de pesquisa sobre a tal da Síndrome do pensamento acelerado.[v] Mas o que isso tem a ver? Simples, o fato de que para ser considerada uma descoberta científica, qualquer questão deve estar devidamente documentada e ter sido revisada por pares através de congressos ou periódicos científicos, coisa que não aconteceu em nenhum momento com tal questão do Sr. Cury.
Outra coisa interessante, ao olhar na descrição do livro acima, vê-se que parece uma pessoa que decidiu caçar pombos com uma metralhadora, e sai atirando para o alto com uma rajada impressionante de balas: o que cair do céu é lucro, não importa se for pombos, pardais ou urubus. Ao descrever sintomas como acordar cansado, sofrer por antecipação, esquecimentos, etc, isso pode ser verificado desde o mais comum e habitual estresse ocupacional até à quadros de ansiedade, ou depressão. Ora, que conveniente não? Me lembro muito bem de uma época em que eu, aluno esperto do Ensino Médio, não havia estudado para a prova de Biologia, e a questão da avaliação foi “Descreva quais são os sintomas da Malária”, e eu respondi “febre, dor de cabeça, dor no corpo, diarreia, náuseas e vômitos, dor de estômago, cansaço e fadiga, sudorese, anemia, indigestão, constipação intestinal e mais 12 itens”… minha professora riu! Mas o meu pensamento era simples: se eu colocar um monte de sintomas vagos, acerto pelo menos meia dúzia deles e ganho meio ponto na questão… levei um zero! (Pelo menos aprendi a lição).
Se a gente seguir com a análise do parágrafo de descrição do livro, vamos continuar com o show de obviedades: “considerada o novo mal do século, suplantando a depressão”… Como assim?! Existe um comitê que escolhe qual é o mal do século? Ah não, olhei bem, foi o Sr. Cury (com tantos cientistas no mundo, doutores, PhD’s, pós-doutores, da USP, PUC-Chile, Harvard, Stanford, Oxford, Coimbra, Salamanca, etc… mas o Cury!). E ainda segue: “que acomete grande parte da população mundial”… oi? Cadê dados, estatísticas, censo epidemiológico? Seria o mesmo que afirmar que o pão é agente causador da depressão, afinal de contas, cerca de 98% das pessoas deprimidas comeram pão ao menos uma vez na vida (conta outra!).
O que acontece é o seguinte: pega-se um termo que já está em voga na atualidade, como é o caso da ansiedade, veste-se o mesmo de uma nova “linguagem” e apresenta-se na forma comercial: livros de autoajuda misturados com certa dose de romance e confissão positiva. Ora, isso é o suficiente para vender milhares de milhares de cópias e entrar na mídia!
Não estou questionando a capacidade do Sr. Cury de escrever livros, afinal de contas ele deve ser realmente bom nisso, mas o que eu estou questionando é a falta de critérios científicos (ontológicos, epistemológicos, metodológicos) para afirmar as coisas que este escreve! Aliás, o que tenho visto nas apresentações da obra do sr. Cury é um show de ego-inflado: em seu site diz que o mesmo é criador de uma tal de “Teoria da Inteligência Multifocal” que é estudada em várias universidades dos Estados Unidos, Europa e Brasil… Menos, Augusto! Outra pesquisa nas bases de dados já citadas, só retomou seu nome na citação de um único artigo de uma Revista de uma Faculdade Colombiana que nem consta na lista de Qualis da CAPES[vi] (ou seja, não vale nada em termos científicos nacionais). Além disso, de minha própria experiência em estudos e pesquisas nos Estados Unidos, Chile, Espanha, Bélgica e Brasil, nunca sequer ouvi uma referência a Augusto Cury como um pesquisador ou cientista, nem qualquer citação à seus trabalhos.
E para finalizar, também é importante ressaltar a pérola proferida em sua entrevista: a “Síndrome do Pensamento Acelerado é causada pelo excesso de informação”… Oi? E qual o estudo científico que determina a quantidade máxima aceitável de informação que o cérebro é capaz de processar? Ora, quer dizer que um programador de supercomputadores para o Google ou a NASA têm mais probabilidade de sofrer disso do que um entregador de pizza?
O que parece que ocorre é que o sr. Cury pegou um monte de relatos de pessoas durante a sua trajetória acadêmica, que variam desde o estresse ocupacional, ansiedade, e padrões de vida hiperativos (que foram aprendidos como processos culturais, não biológicos) e transformou isso em ouro comercial.
Enfim, o objetivo deste texto não é denegrir a imagem do sr. Cury, mas de levar um pouco de luz diante de tanta desinformação científica que tem sido veiculado pela mídia, pela internet ou pela literatura de autoajuda: estamos reinventando nomes para velhos problemas e vedendo-os como se fossem coisas novas! Aliás, algumas pessoas estão criando problemas e através de sua influência cultural estão induzindo as pessoas a se reconhecerem neles e com isso gastarem rios de dinheiro para tentarem minimizar suas angústias. Nosso trabalho diante disso é mostrar, com base na ciência os engodos que nós temos caído e nem percebido – com base na ciência, “Síndrome do Pensamento Acelerado” não existe!
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Imagem: Extraída do Google Imagem
[i] Disponível em: http://www.saraiva.com.br/ansiedade-como-enfrentar-o-mal-do-seculo-a-sindrome-do-pensamento-acelerado-6278664.html no dia 04 de Fevereiro de 2016.
[ii] Entrega do título de “doutor” em psicanálise ao Sr. Augusto Cury: http://www.portalfolha.com/gerais/uniderc-outorga-titulo-academico-de-doutor-a-augusto-cury/, disponível em 04 de Fevereiro de 2016.
[iii] Justiça Federal de Pernambuco suspende divulgação de falsos cursos de mestrado e doutorado pela Uniderc: http://g1.globo.com/pe/caruaru-regiao/noticia/2014/09/jfpe-suspende-divulgacao-de-cursos-de-mestrado-e-doutorado-da-uniderc.html, disponível em 04 de Fevereiro de 2016
[iv] Entrevista disponível em 04 de Fevereiro de 2016, no Youtube, através do link: https://www.youtube.com/watch?v=V-7xp6iJ7EQ
[v] Busca realizada nos sites: www.scielo.br, www.pepsic.bvsalud.org e www.periodicos.capes.gov.br.
[vi] Revista Práxis, disponível em: http://revistas.unimagdalena.edu.co/index.php/praxis/article/view/40 no dia 04 de Fevereiro de 2016.