Atualidades e psicologia

Na corrida pela entrega: uberização do trabalho e saúde mental

Na corrida pela entrega: uberização do trabalho e saúde mental

A vida nos centros urbanos está cada vez mais acelerada. Entre as inúmeras tarefas cotidianas, os aplicativos de delivery se tornaram um recurso bastante utilizado por muitas pessoas para facilitar a rotina. A praticidade está em receber rapidamente em sua casa os mais variados produtos desejados, principalmente as refeições. Isso depende da fundamental figura do entregador. Com suas bags carregando as entregas, percorrem de motocicletas as vias da cidade, em suas próprias corridas contra o tempo. Um tempo, geralmente, curto e estipulado pelos aplicativos que mediam as compras entre comerciantes e consumidores. No entanto, em desacordo com sua importância, o trabalho do entregador é precarizado progressivamente. Nessa direção, pode ser interessante refletir sobre a saúde mental desses profissionais, principalmente na data de hoje, em que é comemorado o Dia do Motociclista.

Durante o isolamento social causado pela pandemia do novo coronavírus, as empresas de delivery cresceram exponencialmente, aumentando a demanda pelo trabalho dos entregadores. Entretanto, mesmo arriscando suas vidas e de suas famílias, incorreríamos em erro se com isso presumíssemos que estes profissionais passaram a receber mais. Segundo uma reportagem da BBC News Brasil, uma pesquisa feita pela Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (Remir Trabalho), com 252 entregadores de 26 cidades, 60,3% relataram uma queda na remuneração, comparando o período de pandemia ao momento anterior. É nesse contexto que ocorreram em várias cidades o “Breque dos APPS”, em que os profissionais paralisaram as entregas para pedir melhorias nas condições de trabalho. Entre as reivindicações, estavam o aumento da remuneração das corridas e o rechaço à alta no preço dos combustíveis.

Observa-se que essa profissão representa uma nova forma de organizar, gerenciar e controlar o trabalho mediado pelas plataformas digitais. É um fenômeno que vem sendo chamado de “Uberização do trabalho”. Nessa modalidade, não há vínculos empregatícios e, sendo assim, os profissionais não dispõem de benefícios, direitos trabalhistas e nem são contemplados com segurança no trabalho. Segundo as plataformas, o entregador parceiro tem liberdade para trabalhar fazendo seus horários e escolhendo as entregas, sendo ele mesmo um “empreendedor”. Entretanto, as empresas contam com a tecnologia dos algoritmos para mapear, distribuir e precificar o trabalho dos empregadores, criando uma espécie de trabalho sob demanda. Sob a lógica algorítmica dos aplicativos, os trabalhadores permanecem em longas jornadas na rua, se expondo aos perigos do trânsito e da criminalidade, sem qualquer tipo de remuneração por possíveis acidentes. 

O resultado de todo esse contexto de exploração do trabalho é a influência direta e perversa na saúde física e, principalmente, mental desses trabalhadores. Aqui, a saúde mental não é tão-só uma ausência de doenças, mas pode ser entendida considerando as relações entre os marcadores sociais que influenciam na qualidade de vida das pessoas. Falar de saúde mental implica pensar o coletivo, a cultura, a política, os contextos econômicos e geográficos. Logo, implica também o olhar para as relações estabelecidas entre nós e o mundo. Não existimos como seres isolados e, assim, o sofrimento não é meramente individual. 

Quando os motociclistas saem de casa para realizar as entregas do dia, nada é garantido. Como sabemos, estão expostos não só a já mencionada violência urbana, como a dos comuns maus tratos dos estabelecimentos e dos clientes dos aplicativos. Nestas circunstâncias, os prejuízos à saúde mental são inúmeros. Em suma, podemos citar os principais: o agravamento de transtornos já existentes e o início de novos quadros derivados da condição de trabalho. Nesse sentido, os entregadores podem sofrer com a ansiedade, o estresse, a insegurança, a depressão, a exaustão, a Síndrome de Burnout (caracterizada pela exaustão extrema, estresse e esgotamento físico resultante de situações de trabalho desgastantes) e com a adoção de hábitos prejudicais a saúde – por má alimentação, privação de necessidades fisiológicas e do sono e abuso de substâncias como álcool e outras drogas.

Muitos desses sintomas são representados no filme animado O Serviço de Entregas da Kiki, escrito e dirigido por Hayao Miyazaki. Nele acompanhamos a personagem Kiki, uma jovem bruxa que segue o ritual tradicional de seu clã, de se mudar e sobreviver em uma cidade sem bruxas, apenas na companhia de seu gato. Kiki vai usar sua habilidade recém aprendida de voar na vassoura, para abrir um serviço de entregas e, assim, ela se sustenta na nova cidade. No decorrer do filme, a personagem sofre por não ter tempo para se relacionar com amigos em decorrência das demandas exaustivas do trabalho de entregas, e acaba tendo crises depressivas e perdendo seus poderes. Parte do alívio de seu sofrimento é apresentado no filme pela forma com a qual a personagem vai redefinindo sua relação com o tempo de trabalho e do tempo de cuidado de si. Embora seja, uma simplificação exagerada e lúdica, há como trazer essa reflexão para o nosso contexto. As condições precárias de trabalho usurpam o que é mais valioso para todos nós: o tempo. Tempo para cuidar de si, tempo para o lazer, tempo para o ócio, tempo para relacionamentos, família e amigos. Enfim, tempo para viver! 

Ao final, é importante mencionar que é uma grande responsabilidade social, que nós, como consumidores, temos que repensar nossas formas de consumo e de como podemos contribuir para que essa classe tão essencial possa exercer seu trabalho com dignidade. É importante enfatizar também, a importância da organização política dos entregadores. Os avanços para a classe acontecerão através da organização, reivindicação de direitos e melhorias nas condições de trabalho. Isso, provavelmente, acarretará na melhora da qualidade de vida dos profissionais, diminuindo o sofrimento decorrente do trabalho precarizado. 

 

Matéria da BBC Brasil: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52564246

 

Pablo Henrique | Psicólogo – CRP 09/15071

Trabalho com atendimento clínico de adolescentes e adultos nos formatos presencial e online. Me dedico em demandas relacionadas a ansiedade, questões profissionais, relacionamentos, questões raciais, gênero e sexualidade.

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