A criança em tempos de coronavírus

A criança em tempos de coronavírus

O coronavírus veio como uma tempestade para todos nós: na sexta saímos da escola dizendo “até segunda”, as crianças organizaram seus materiais para as atividades a serem feitas em casa. No domingo, enquanto nos organizamos para ir para a escola no dia seguinte, veio o comunicado de que a escola não iria abrir a partir de segunda, durante quinze dias, cumprindo as determinações governamentais: se tornava imprescindível cumprirmos a quarentena em casa.

Ainda estamos confusos com tudo isso que está acontecendo: ter que trabalhar em casa; construir outras dinâmicas de sala-de-aula (agora virtuais); não ter a presença e participação das crianças/professores no contexto da escola; não poder convidar um amigo para brincar; sequer sair de casa para andar de bicicleta no condomínio. Tudo isso está associado a necessidade que nos foi criada de proteção. Nós não vemos o vírus, não podemos sentí-lo e sequer imaginar quem ou quantas pessoas estão infectadas e são passíveis de transmissão, por isso se tornou necessário nos cuidar em casa, com a nossa família. Para nós é difícil né? Mudar a nossa rotina de trabalho/estudos/casa/trabalho/atividades. Pensem só como está sendo para uma criança? Talvez vocês estejam sentindo isso aí, na casa de vocês, com as crianças de vocês.

Esse afastamento da escola e distanciamento social: de amigos, do inglês, dos esportes e até mesmo das aulas particulares e encontros no parque, está refletindo diretamente na forma como as crianças estão tendo que lidar com o novo tempo que lhes são apresentadas. Dessa vez não é como nas férias, em que elas podem fazer o que quiserem (sob orientação dos responsáveis, claro), escolhendo a hora de brincar, comer, dormir, sair, passear, voltar; há atividades da escola para serem cumpridas; o vídeo-game, que nas férias era disponibilizado, continua com acesso restrito, até porque queremos e esperamos que as crianças continuem com o mesmo ritmo escolar, mas agora em casa. Mas até quando?

Fico pensando o quanto está sendo difícil para nós, adultos, ter que lidar com esse “novo tempo”: temos uma responsabilidade maior de cumprir com as nossas obrigações trabalhistas em casa, além de que, termos que usar a tecnologia totalmente a favor destas. Não que não estejamos acostumados a usar da tecnologia, mas entendem o quanto o contexto atual tornou tudo muito diferente? Estar em casa, muitas vezes com outras pessoas no mesmo ambiente, e ainda assim querer e tentar manter o ritmo de uma semana atrás. Difícil, não é?

Para as crianças não é diferente: ter que estar em casa de manhã e à tarde (turnos em que geralmente elas estão na escola ou em outras atividades extra-escolares), e não poder fazer o que, comumente, ela poderia e gostaria de fazer. As crianças que tem uma rotina cheia, carregada de atividades, está sentindo intensamente tudo isso. É um tempo novo, diferente daquele que elas estão acostumadas, provocando um emaranhado de emoções: tristeza e raiva, muita angústia e ansiedade para esse período acabar logo e poder, ao menos, pisar o pé para fora de casa.

Esses dias escutei de uma mãe que agora está até difícil dizer para o filho “saia do celular e vai lá fora brincar”, mas então, o que nós podemos fazer para tornar esse tempo mais leve e produtivo?

Acredito que o primeiro passo se refere ao entendimento do que é esse processo histórico que estamos vivendo, utilizando da linguagem delas, do porque temos que ficar em casa e dos cuidados que devemos ter durante essa quarentena, sem que para isso, a gente exponha, sem necessidade, os números alarmantes de casos. Este é um processo, assim como tantos outros que já existiram. Nessa hora cabe contar alguma experiência sua em relação a alguma privação que já tenha vivenciado, o que acha?

Cabe também não exigirmos da criança o mesmo ritmo que ela estava tendo antes desta semana (até porque muitas delas ainda estavam em processo de adaptação escolar). Não é porque ela está em casa que ela tenha que trabalhar o mesmo tanto que nós. Estar em casa nos possibilita organizar a rotina de uma forma mais branda, nos permite dar pausas entre uma atividade e outra, nos permite meditar ou beber uma água quando nosso corpo e nossa mente se cansar. A criança vivencia um tempo que é totalmente diferente e singular para cada uma, então o que acham de aproveitarmos este período para conhecer como ela utiliza seu tempo?

Crie momentos em que elas possam expressar como estão se sentindo. Como dito anteriormente, esse é um período confuso, com uma mistura de sentimentos e emoções, tanto para elas como para nós. Podemos começar ouvindo uma música ou fazendo um desenho, e aí conversamos sobre como ela está sentindo e percebendo esse tempo, quais seus desejos e angústias, para que assim possamos compartilhar e ressignificar sentimentos que por vezes não estão lhe favorecendo (acredito que este seja um momento importante inclusive para vocês pais).

A criança em tempos de coronavírus precisa, mais uma vez, de nós. Dos nossos cuidados, do nosso acolhimento, da nossa escuta e, principalmente, da nossa pausa. É preciso nos conectarmos para que possamos nos fortalecer e juntos enfrentar esse processo que está sendo tão doloroso para todos nós. Esse tempo vai passar e aí teremos ainda mais espaço para brincar, abraçar e aproveitar um tempo que não será mais do coronavírus, mas de vocês.

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Autora:

MARIA JULIA DE OLIVEIRA SILVA | Psicóloga – CRP 09/12822

Graduada em Psicologia – Bacharelado e Licenciatura, pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Na graduação atuou como monitora de inclusão do Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação (CEPAE/UFG), integrou o Programa Crisálida (UFG), atuando em uma comunidade de Aparecida de Goiânia, e realizou estágio em Psicologia Escolar. Possui interesse em desenvolvimento humano, infância e adolescência, contextos de políticas públicas e sociais. Atua como psicóloga clínica com base na psicologia sócio-histórica. É integrante do Programa Desenvolver – Assessoria e Consultoria Escolar.

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