Escolhendo a Fechadura

Escolhendo a Fechadura

Sabe, gente. É tanta coisa que eu fico sem jeito. Sou eu sozinho e esse nó no peito. Já desfeito em lágrimas que eu luto pra esconder. – Gilberto Gil.

Durante muitos anos procurei encaixar várias chaves na fechadura da minha sala de estar, preocupado porque ninguém conseguia destravar as trancas decidi apelar ao chaveiro para que a fechadura fosse modificada por um modelo mais comum, mais acessível.  

Perdi a conta de quantas vezes parentes, amigos, amores e curiosos tentaram abrir a porta, mas não conseguiram. Perfeito! Agora sim eu não precisaria me aborrecer com a inacessibilidade que aquela fechadura provocava. Na primeira semana foi só festa, a minha casa vivia cheia, repleta de gente de todos os tipos, até a dona Maria a mulher que tinha o hábito de sair espalhando mexerico da vida alheia das pessoas tinha ido me visitar.

Ah, como era bom receber visitas, como eu tinha me tornado alguém mais sociável e aberto a novas experiências, afinal, a vida precisa ser vivida intensamente (pelo menos é o que diz o poeta).

Porém, com o passar do tempo, as paredes começaram a aparecer com rabiscos, alguns móveis quebrados, o piso engordurado, até um mau cheiro às vezes. Coisinha besta, à toa, pensei comigo. Nada que uma boa faxina não resolva. Só que mesmo limpando e esfregando o piso, algumas marcas ainda persistiam. Todos os dias de algum modo, tentava limpar a balbúrdia deixada pelos os outros; então comecei a cansar, minhas mãos deram calos, tive rugas, olheiras pela falta de dormir, dores nas costas e um cansaço que não era apenas mais físico, mas psicológico.

Cancelei as visitas por um período indeterminado porque precisava organizar aquela barafunda que me intoxicava. Em uma terça feira qualquer, levantei da cama, desci as escadas, andei por todos os cômodos e notei que até teias de aranhas foram tecidas no teto.

O Tic Tac do relógio me lembrava que o tempo não parou sequer um segundo e que alguns insetos, inclusive dezenas de baratas, se instalaram na sujeira que estava não apenas o meu lar, mas também o meu peito.

Me incomodava o fato das pessoas terem deixado o meu cantinho naquele estado e me cortava a alma por eu ter permitido que isso acontecesse. Respirei fundo, bati três vezes na madeira, dei três pulinhos a São Longuinho, amarrotei o cabelo, contratei um dedetizador e dei uma faxina em toda a anarquia que se transformou o meu lar.

Algumas marcas ainda ficaram nas paredes e no chão, vestígios gravados em todo o canto da casa, mas isso com uma pintura aqui, uma reparação acolá e com os devidos cuidados tapam aos poucos as cicatrizes que persistem.

Também coloquei a fechadura antiga e entendi que apenas uma pessoa precisa ter a chave correta, o encaixe perfeito da minha fechadura: eu mesmo. Compreendi que a porta deve sempre ser aberta pelo dono da residência e mais ninguém.

Conectei duas caixinhas de som no meu notebook e ao som de Dancing On My Own – Robin, estiquei o corpo, sacudi os braços e descarreguei a alma. Finalmente enxerguei a arte em estar sozinho, percebi que não posso deixar livre e ao mesmo tempo prender na gaiola o passarinho. E daqui em diante, quem vier e bater à porta, só entrará se não deteriorar minha casa, meu peito, minha vida, meu lar.

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