Era uma vez uma criança superdotada – Sobre “Superdotação” Reprimida

Era uma vez uma criança superdotada – Sobre “Superdotação” Reprimida
Marcelo era um
garoto pobre, que nasceu em uma cidade qualquer de um país qualquer, dentro de
todas as possibilidades que o mundo lhe poderia haver fornecido para nascer,
questão esta afinal que sempre o intrigou: “Porque eu nasci aqui e não em outro
lugar do mundo?” Aliás, muitas questões o intrigavam – era um garoto que fazia
muitas perguntas, ainda com seus cinco anos de idade – como, “de onde vêm os
bebês?”, “porque falamos Português?”, “Quem é Deus?”, “Porque eu nasci?”, “Porque
eu sou eu, e não outra pessoa?”, ou coisas do gênero, fazendo seus pais se
desdobrarem pare cuidar de tantas dúvidas.
Mas de todas
as dúvidas possíveis, a que mais o perturbava era de porque havia nascido com
uma cicatriz na face (fruto de um problema genético que o acompanhou desde o
nascimento), algo que o tornava objeto de escárnio entre os seus coleguinhas, e
às vezes entre os próprios irmãos… Questão esta que o aterrorizou por vários
e vários anos, ao ser o alvo de todas as formas de bullying na escola (nome
este que foi criado muito tempo depois para dar nome à dor psíquica que
acometia ao mesmo).
A escola era
um mar de sofrimento, era obrigado a conviver com os “normais” que o segregavam
e colocavam a par de todas as brincadeiras, afinal de contas, somente uma criança
pode saber o quanto outra criança pode ser cruel no mundo… Escola esta que
parecia ser uma obrigação, afinal de contas, havia entrado no “Pré” aos 5 anos
já sabendo ler e escrever, e fazendo algumas operações matemáticas simples. Fazia
todas as tarefas mais rápido, tirava as melhores notas e era insuportavelmente
o melhor da turma, afinal de contas, precisava ser o melhor em algo, para
sobreviver a humilhação psíquica que sofria sendo colocado à margem da turma.
Os
professores, coitados, sem recursos e tentando ajudar, fizeram uma indecente
proposta: “Que tal ir para a segunda série?” A resposta, de um garoto ameaçado
pelo medo do desconhecido, foi um “Não, eu estou bem aqui”… pobre garoto, não
sabia que em mundo de adulto criança não tinha vez. No próximo ano seria,
contra sua vontade, obrigado a ir para segunda série, pulando um ano de
estudos. Chegando em sua nova turma, percebeu que era o menor de todos, o que
não diminuiu de nenhuma forma a perseguição dos colegas, só aumentando-a e,
consequentemente a forma como o Marcelo ficava insuportavelmente narcisista.
De qualquer
forma, em um ambiente um pouco mais “avançado”, já estava em pé de igualdade
com alguns, mesmo tendo perdido vários conteúdos de língua portuguesa (mas quem
iria querer saber o que era um “parágrafo” ou um “travessão” aos 6 anos de idade?!)
e alguns de matemática, e em pouco mais de 3 meses já havia tirado de letra
tais pendências: Àquela altura já entendia que continuaria sendo o melhor da
turma, mesmo sem precisar fazer nenhum tipo de esforço…. não deu outra,
aprendeu a ser medíocre: Aprendeu a estudar somente o necessário para passar de
ano, para fazer-se superior aos colegas quando necessário, ou para preservar
alguns benefícios, afinal de contas, era sempre dispensado de estudar o último
bimestre por ter boas notas… pobre garoto! Cresceu e, enquanto não teve
concorrência, sempre se manteve na mediocridade, até o dia em que se viu
novamente ameaçado por uma abrupta mudança de escola para cursar a quinta
série, pois a antiga não ofertava as turmas sequentes.
Sob muito
choro, abandonou os poucos amigos que havia feito e a sua segurança, e depois
de dar muito trabalho aos professores, habituou-se à nova escola e já estava no
primeiro mês entre um dos melhores do colégio, que já tinha “alunos grandes”…
Mas em sua sala havia uma “nova espécie” de colegas que ele não conhecia: Os
esforçados! Estes estudavam de verdade, e sempre tiravam boas notas, e junto
com eles, havia outra espécie desconhecida “a dos professores carrascos”,
daqueles que não estavam nem aí para as emoções dos alunos e só queriam notas
como sinal de produtividade… Enfim, em pouco tempo ele se viu competindo com
outros dois colegas de sala para ver quem tinha as melhores notas, e descobriu
que, mesmo tirando quase todas as notas 10 (afinal odiava matemática e sempre
tirava 7, 8 ou 9), viu vez ou outra um desses colegas tendo todos os sonhados
10… Seu reino estava abalado. Foi o primeiro golpe em seu narcisismo, ao
aprender que nunca seria o melhor em tudo… fazer o quê, teve que viver com
isso.
E foi
crescendo, crescendo, até ter plena consciência de que não precisava estudar
como os demais para aprender as coisas: Se desse uma rápida lida em uma página
ou outra do livro podia deduzir grande parte do conteúdo (não sabia o que era
lógica à esta altura da vida, mas já a praticava de sua maneira torta), ou
mesmo aprendeu a “encher linguiça” (contornar as situações conflituosas com a
retórica), o que o fez sobreviver até o colegial.
O último ano
de sua escola foi interessante: Época em que todos os estudantes de qualquer
escola que se preze estariam interessados em prestar vestibular, estudando com
afinco para passar, foi o ano em que menos estudou – se tornou vice-campeão de
xadrez do colégio, campeão de jogos matemáticos (com medalha de uma
Universidade Federal e tudo), tornou-se presidente do grêmio estudantil da
escola (pois já havia melhorado suas habilidades sociais e linguísticas a ponto
de se estabelecer como um líder no colégio) e começou a ter interesse por essas
coisas de namoro (apesar de ser um fracasso amoroso à época)… Mas estudar que
é bom: NADA! E assim foi…
Fez o ENEM e
tirou 770, uma bela nota no ano em que a média nacional foi 450, garantindo assim
seu ingresso na Universidade, com bolsa de estudos integral, afinal era pobre e
não tinha dinheiro para pagar faculdade mais cara do Estado (onde existia o
melhor curso do Estado em sua área).
E a faculdade
foi sim, uma verdadeira escola, destas que ensinou várias habilidades que no “prézinho”
ainda não havia aprendido: Relacionamentos! Aprendeu a lidar com pessoas, e
acima de tudo, a tratar grande parte de seu ego gigante e adoecido. Aprendeu
que o seu passado educacional, por mais que fosse atormentador, havia formado
grande parte de sua personalidade, e que estava adoecida em narcisismo, mas que
mesmo assim era responsável em seu presente momento pela forma como vivia e
pelas escolhas que fazia… E apanhando muito, à duras penas, descobriu em uma
de suas aulas o nome de seu problema: Não era uma questão de simples “Bullying”
ou o “Estigma” que carregava, mas não saber que era portador de ALTAS
HABILIDADES (vulga “Superdotação”)… Sendo que soube disso somente depois de
cursar 6 períodos do curso de Psicologia.
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A história
relatada acima é real, ocorreu com uma pessoa comum (o nome é fictício), que
não é nenhuma espécie de gênio, excepcional, ou muito menos “acima da média”,
isso porque aprendeu ele mesmo a desmistificar o conceito de “altas
habilidades/superdotação”: Essa que não é nenhuma característica especial ou
superpoder cerebral que emana de alguns sortudos ou “escolhidos-pelo-destino” –
mas é uma condição socialmente construída – ora, se a mãe de Marcelo não
tivesse pegado em sua mãozinha e, cheia de afeto, ensinado-o a contornar várias
letras em um papel de rabisco, ou lido um caminhão de livros infantis para ele
(ao invés da TV), não haveria nenhum tipo de habilidade. O que ocorre é se Marcelo
não tivesse tido uma estimulação cognitiva rica com um grande adendo de afeto,
não haveria história que contar.
Um grande
teórico das Altas Habilidades foi Renzulli (1978) que revolucionou o pensamento
sobre o tema ao apresentá-lo como a capacidade de interação entre três sistemas
comportamentais humanos: 1) Habilidades gerais acima da média; 2) Altos níveis
de compromisso com as tarefas que assume e; 3) Altos níveis de criatividade.
Se a educação
formal (escola) de Marcelo tivesse entendido o seu caso particular, e fosse
preparada para recebê-lo, talvez hoje ele fosse uma pessoa com potencial
educacional muito maior (nunca saberemos). Mas o fato é que, há muitas maneiras
de se matar uma superdotação, e uma delas é a simples incompreensão da mesma,
de forma que, sem a correta estimulação um potencial gênio para a humanidade,
torna-se uma pessoa mediana (e isso é muito comum!).
Este tipo de
teoria/pensamento serve justamente para desmistificarmos a nossa visão do senso
comum de homem-gênio que atinge elevado grau de pensamento matemático ou altos
escores em teste como o WISC ou WAIS. Todavia, se levarmos em consideração
parâmetros mais amplos, e diga-se de passagem, mais justos para esta abordagem,
o número de superdodatos no mundo pode variar entre 15 e 30%, segundo pesquisa
de Reis e Renzulli (1986), o que significa que, a cada 10 pessoas que você conhece,
3 são potenciais superdotados (e a grande maioria destes pode estar na faixa
dos superdotados reprimidos).
Superdotação vai muito além de uma pessoa genial que dá conta de fazer todas as coisas com maestria: Ela é muito mais simples do que se imagina, apesar de ser estigmatizada. Uma pessoa com superdotação não é, necessariamente, a mais inteligente em todas as coisas, e em algumas vezes pode até ser menos inteligente do que a maioria das pessoas “normais” – é comum muitas pessoas com Altas Habilidades Verbo Linguísticas serem péssimas em matemática, e vice-versa, por exemplo.
Enfim, este
tema que parece ser tão trivial, deveria ser tema de maior escrutínio de todos,
ao passo que nosso papel enquanto cidadãos esclarecidos deve ser o da difusão
da informação para auxílio de qualquer pessoa que necessite.
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Caso queira
saber mais informações, de maneira bem pedagógica, para ajudar em algum caso
conhecido, semelhante ao de Marcelo, segue o link de uma Cartilha do Governo
Federal: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me000452.pdf
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E que você
saiba que a “superdotação” é mais comum do que se imagina e que, não se trata
de nenhum estigma, mas de uma condição que deve ser particularmente trabalhada
de forma a dar condições normais de desenvolvimento humano à seu portador.
Referências
 
Renzulli, J.
S. (1978). What makes giftedness? Reexamining a definition. Phi Delta Kappan, 60, 180-184, 261.
Reis, S. M.,
& Renzulli, J. S. (1986). A case for the broadened conception of
giftedness. Em J. S. Renzulli & S. M. Reis (Orgs.), The Triad reader (pp. 20-22). Mansfield, CT: Creative Learning
Press.
Imagens: Extraídas do Google Imagens

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